quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

Um velho

Na esquina, um velho homem sentado num banco. Cigarro aceso, o olhar distante e a eternidade pousada sobre cada tragada. Vende alhos e não nota que lhe investigo os mistérios a cada manhã que atravesso aquela rua. Entre poeira, pessoas e ruídos, parece meditar absorto em outro mundo. O que lhe toma os pensamentos? Corpo franzino, as pernas cruzadas, a pele preta, as mãos pequenas, o cigarro empunhado de modo que, no trago, quatro dedos pretos lhe tomem a frente da boca. Mudez. Como seria a sua voz? Os olhos parados parecem enxergar através das coisas, a calma nos movimentos parece calculada para que não interfiram no pensar.

Penso em comprar alhos. Em ver aos meus voltados aqueles olhos tão distantes. Desisto. Opto por observar de longe. Ele não parece precisar de mim, do meu dinheiro, da venda dos alhos. Ele não parece precisar. Placidez que só acompanha quem muito viveu, quem de muito sabe, quem pouco espera.

Não sei como chega, quando vai. Não sei quem terá sido, quem é e se porventura sonhou na tenra idade com a banalidade crua daquela esquina. No entanto, invejo-lhe a calma com que suga do mundo o ar que mantém luzente a sua brasa. Não sei como suporta, como resiste ao caos do entorno assim, mimético, dissolvido no velho muro que lhe ampara o dorso. É só um velho e o caos só afeta a quem lhe abre as portas. Não é o seu caso. Nada existe. O fim do ciclo se anuncia e o corpo revela a cada ruga, a cada tremor, a certeza de que não há de fato o que esperar, de que não há nada na virada da esquina que possa fazer tanta diferença. O caminho é um só. Absolutamente.

domingo, 14 de dezembro de 2008

Sonho

Manhã cinzenta, calmaria
Névoa sobre o mar
Desejo de Eva
Desejo de evaporar
Eu partiria?
Sonho de relva
A sacudir com as carícias do vento
Sonho de som
De meninos acariciando violões
Sonho de sim
Elo repentino com o sentido que nada faz
Desejo fugaz
Sonho de mim
Sonho demais.
(em 02/12/08)

sábado, 13 de dezembro de 2008

Refúgios

Inquietude matinal. O dia começou errado. Hora errada, tarefa em falta, corpo mole. Angústia no peito. Quer cigarros, mas não fuma. Quer correr, mas na casa não cabe seu ímpeto. Aliás, no seu corpo não cabe seu ímpeto. Quer rasgá-lo. Quer correr de dentro do seu corpo. “Arrancar-se das prisões carnais!”...”viver à luz de astros imortais”, se os achasse.. encontrar no abraço das estrelas todos os afagos que negou e tem negado a si.

Libertação no refúgio estelar. Corrida sideral. Morte carnal. Correr do peso de ser rainha solar na corte absoluta da juventude, no peso incondicional dos potenciais. Vontade incontível de ser cão. Um velho cão a contemplar a vida e a viver só por isso. Contemplação!

Ela rodopia no quarto, lembra do redemoinho em sua esquina, uma curva de vento que sempre testemunha sua chegada à noitinha. Ela se vê atuando numa paródia da sua vida. Círculos, círculos, círculos cada vez mais estreitos. Acabará rodopiando em torno do seu próprio eixo? Acabará aparafusada no assoalho da mesma e única casa em que sempre viveu? Realmente tem vivido? Não quer pensar, não quer pesar. Não quer ter o seu futuro. Não quer nada. Não quer querer.

Por enquanto, o que lhe vale é a fuga. Abre a janela. Prova o amargo do chá. Suicídio gustativo. Negação. Privação. Do que se furta? Encurva-se instintivamente para proteger sua ferida interior que não sara nunca. Onde achar na alma o bálsamo que na vida-corpo mora em fúteis cápsulas sensoriais? Anestesia. Uma suspensão bastava. Agarra-se às asas de um poema. É só o que lhe resta.