domingo, 31 de outubro de 2010

Descaminho

“Mas como as espumas flutuantes levam, boiando nas solidões marinhas, a lágrima saudosa do marujo... possam eles, ó meus amigos! - efêmeros filhos de minh’alma - levar uma lembrança de mim às vossas plagas!”
(Castro Alves, Espumas Flutuantes; prólogo)

Vaga de mar em meu peito
Tua memória permanece
Baldia, latente, revirada
Foram caminhos de mar
Trilhados sem rota
Em madrugadas despertas de silêncio
Aqueles teus passos tão meus
O mar amanhecendo à nossa vista
- indecifrável como sempre -
Flutua ainda uma névoa azulada de mistério:
Em que maré se foram rumar
Rebatidas de cansaço
Nossas solidões?
É tarde, eu sei
É muito tarde, caminho
Por ruas longínquas
De terra firme sob os pés,
Mas permanece inalterado
O mar imenso de saudade
Daquele tudo
Que não ousamos.

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Hoje Eterno

(para Vitor, meu amor amigo)

Vem comigo hoje
Que esse cansaço torto
Se debruça como um cão à minha porta
Mas vem assim, para mim
De olhos abertos
Nesta manhã vagarosa
Agudamente terna
E desata tua dor
Às claras
Sobre meu colo de chumbo
Andaremos sim
Por aí, sem direção
A recordar
Sem esforços
As noites pardas pelas ruas
A fumaça a enovelar nossas cabeças
Como num sonho
De momento
Em que nos percamos
Eternamente.

terça-feira, 27 de julho de 2010

Avesso

Silêncio na sala, me tenho só
As horas dormem
Por dentro das horas
O sono repousa calmo
No corpo da casa
Em mim, pelo avesso
Lívida insônia contradita
É noite - em claro -
A solidão desliza no meu corpo
Lânguida, por dentro
Mansamente
Caminha só - em si -
Morna, discreta
Faz silêncio sob a pele
Palavra muda
Desvigiada
Me cala
Por dentro.

sexta-feira, 30 de abril de 2010

Desvairada

Passa a tarde, passa o dia, o tempo, o nada
Horas espinhadas pela sala, tudo enfim se cala
Que há em mim deste meu lar de calmaria
- ceias silenciosas, o som na tarde, as horas -,
De noites varadas a fio, enfim, que há?
Serei aqui, será? Aqui, além? Já não o sou?
O vento arrasta folhas na varanda, leviano
Traz à memória homens do mundo
A sacudir em desalinho como as folhas
- secas, pelos ares, sem razão -
Serei eu aquele homem solitário
À margem da estrada pela noite
E serão meus aqueles seus olhos de nada?
Horas a fio ali no breu, estradas passadas
Será ele eu mais do que eu, assim vazio, leviano
E eu em mim, assim, como um disfarce
De moça desvairada desse lar - o mundo à margem?
Meu juízo a crepitar no breu da noite
A noite, as horas passando, espinhadas
Que há de mim neste penar em desalinho
Arrastado pelo chão, lançado aos ares desse dia?
Serão as folhas? Serei eu? Já não as sou?
Os homens do mundo dentro de mim
Sou eu pelos ares - feito folhas, sem razão -
Asas do meu juízo - minha margem de calma -
Esse caminhar no ermo aqui por dentro
Tudo lá fora treme ao fim
De dias calmos embalados pelo vento
De horas passadas pela sala,
O lar, a varanda, o tempo, o nada, tudo treme
Ao fim do meu juízo no breu da noite,
Do sacudir das minhas asas de juízo
- pássaros em revoada à margem do dia -
A tremer em desalinho à margem da calma
Feito os homens levianos
Dentro de mim.

segunda-feira, 19 de abril de 2010

O Salto

(para os meus Mano, Nique e Fafi)


Era guerra

Era guerra e amor

No corpo triste

Triste de ter e deixar

Novamente

Era dor

De subir e chegar

E calhar no vértice

Alto da minha razão

- aos poucos esvaída -

Entre lucidez e torpor

À beira do salto

Da despedida

Adeus

Era amor.

domingo, 18 de abril de 2010

Sonho e Sal

“É impossível levar um barco sem temporais
E suportar a vida como um momento além do cais
Que passa ao largo do nosso corpo”
(José Carlos Capinan; Movimento dos Barcos)

Embarcação lançada nas águas
Meus pesares no teu mar
De ondas insólitas
Balanço sem norte
Meu sonhar fecundo
De beber dos teus olhos
O verde do mundo
Destas águas revoltas
Te levar para além
(na proa, meu bem)
Do ventre do mar
Curar nossa dor
Em beijos de sal
Viver em ti
Em ti fenecer
Para além de mim
Por fim
Naufragar.

terça-feira, 16 de março de 2010

Ares das Mercês

Dedicado ao centro da cidade do Salvador,
“Cidade de meu andar
(Deste já tão longo andar!)
E talvez de meu repouso...”
(Mário Quintana, O Mapa)

Era uma tarde de março
Depois da manhã

Sobrados de quase memória
Fachadas de mim

Era uma sombra de som
O vento nas folhas

Curva de céu ao redor
O centro oco

Era um capricho de fé
A cruz fincada

Cinzentas andanças de sol
Tudo era pouco.

sexta-feira, 5 de março de 2010

É noite ainda

“O perdido coração enrija e rejubila-se
No lilás perdido e nas perdidas vozes do mar
E o quebradiço espírito se anima em rebeldia
Ante a arqueada virga-áurea e a perdida maresia
Anima-se a reconquistar (...)”
(T.S. Eliot, Quarta-feira de cinzas)

Foi quando a noite se abateu sobre nós dois
Que tuas cores ressurgiram avivadas
Sobriedade, tons amenos misturados
Na extata medida do que são
Daqui de dentro, observo atenta cada passo
Eu vi e vejo, amor, tudo o que passa
E sei que uma semente permanece
Ávida por rebrilhar em novas cores
Num tempo indefinido além de mim, além de nós
Uma herança eterna atravessa o dia e a noite
Perfura a escuridão como uma flecha
Desenhando nosso amor pelo infinito
E quando tremo a observar tua canção,
Passos no tempo desta breve caminhada,
Quero ter uma manhã reinventada,
Arder pela coragem de gritar,
Como quem em plena escuridão
Clama por um dia antecipado:
- Renasce, meu amor,
Eu te suporto!
Mas é noite, amor, ainda
Ainda não.

sábado, 23 de janeiro de 2010

Seculário

O ruído dos anos atravessa o corredor
Ressaltado pelo silêncio, ecoa
Por entre frestas
Ressoa grave em cada vão
- imensidões desabitadas -
Atrás das portas
Há ferrugem nas trancas
E a memória, adormecida, em suspensão
A pesar os ares, feito pó,
É matéria secular de desalento
A embaçar as janelas - olhos fundos –
O tempo corrói o assoalho
Em meu peito, casa vazia
A ruir