terça-feira, 11 de junho de 2013

noturno


pouso meus olhos nos teus
desperta de um sono 
tudo faz silêncio
dentro da noite espedaçada
e nada... nada reluz 
além do mistério da entrega

(meu desespero espalhado na noite dos teus cabelos
o delírio nas mãos sedentas de enlace
a palavra bebida no canto da boca
tudo o mais é abismo
tudo escurece 
dentro da noite sem fim
só o desejo segue certo
flutua desperto no emaranhado da noite
imprime nos olhos direção)

pouso meus olhos sozinhos no teu corpo
vivo e vasto e posto em volta de mim
devolvo o olhar ao que me resta:
minha pele despida
impregnada de espanto.

sexta-feira, 30 de novembro de 2012

finda, novembro


amargo novembro de desvarios
desabo de sono
tenho andado pelas horas
com as mãos cheias de vício
em círculos
na procura fatigada do verso perdido
na desordem calada da minha cabeça

novembro de dias sem fim
comboio de tempos sobre tempos
sobre versos que não saem, sobre mim
tenho a boca suja de rancores
desferindo palavras
para dentro
no caminho estreito da garganta

tudo vacila, novembro, amargamente
é de traição a natureza das coisas
trai a sensatez
à míngua na minha cabeça
essas mãos viciadas, a boca muda
trai o atropelo demorado das horas
o aperto na garganta
covardemente, trai o sono
que me deita
a consciência.

sexta-feira, 2 de novembro de 2012

Memória de mãe


Morena, os passos ligeiros, o pulso firme. Minha mãe era silêncio. Trazia nos olhos uma marca indelével de ternura, logo soube: atrás deles morava uma menina magrelinha, pequenina, distraída com as mãos sempre sujas de tinta. Aprendi sua voz. Observei. No seu tempo, sem que ninguém lhe pedisse, floria. Cantarolava pela casa. Pintava bichinhos pelos panos. Abria as janelas. Num sopro de paz e solidão, também não tardei a descobrir: minha mãe mora em mim.

quinta-feira, 6 de setembro de 2012

Cansaço


Passos arrastados pela casa
Escapo de mim
Pelos olhos
Pela boca
Em cada cômodo
Vazio 
Mundos submersos no escuro
A cabeça voando dentro da noite
Perdida 
A noite passando, passando
O hálito do tempo
Sacudindo as janelas
Dentes a ranger
E esse corpo 
Ao redor de mim
Cheio de ossos
E carne
Cansada
Os pés descalços no chão frio
A casa velha 
Ao redor do corpo
A insônia
Enchendo de coisas 
A cabeça 
A casa
A noite 
Esse vulto de mulher
Tardia e torta 
Que me olha no espelho.

terça-feira, 29 de maio de 2012

Mau modo

Na chegada era você, meu bem
O filme, a casa, a cama em mim
Boas vindas, boas novas
O tato doce do desejo
Palavras finas no lençol
E um punhado caloroso
De místicos detalhes


Na saída, assim sem mais
Cama vazia em noite de chuva
Frio, sem açúcar
Seu café pequeno sobre a mesa
E aquela mania 
De sair para comprar cigarros 
E não voltar nunca mais.

segunda-feira, 26 de março de 2012

Maré de março

Posso sentir a grande força
De maré, turbilhão, alma azulada
Revoltada sobre si
Lacerada em espuma sobre rochedos
Horas a fio, enervada
Remoinhos de dor e cansaço
Minha fúria vem assim
Alma atirada contra os dias
Dias e dias e dores
Até marejar, serenada
Beira de mar
Tudo quieto em mim.

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Matinal

Caminhei ao redor
A vigiar o teu sono
Era poesia
O silêncio
Dos teus olhos
Sonhei:
Repousava leve
Sobre tuas costas
Aprendia da pele
Cada segundo morno
Do teu tempo manso

Serena manhã de sol
No meu tempo fechado.

quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Voragem

(para José)

Caminhávamos sóbrios, nós dois
Era tempo de seguir

À frente, a imensidão de uma árvore se impunha
Seca, frondosa, desfolhada
 éramos pequeninos 
Um pássaro negro habitava-lhe o topo
Apenas um, solitário, como nós
Embora fôssemos dois

No céu, um poente nublado
Eivando de sombras a paisagem
Banhava-nos de certa luz oblíqua
Atravessando nossos olhos de incerteza
Em redor, via-se o ermo, apenas
O descampado sem fim
 éramos finitos 

Vastidão,voragem sombria de onde a noite vertia
Aos poucos derramada sobre nós
Aos nossos olhos sóbrios, atravessados
Seguíamos desafiando a escuridão
 éramos cegos 
Embora soubéssemos os passos

E no breu de um instante supremo
 sem passado, nem futuro 
Sumíamos de nós no escuro
Devorados pela noite
Onde tudo permanece e tudo some
Eu, no escuro de você
Você, no escuro de mim

Sumíamos de nós
No escuro
Era tempo de seguir.

terça-feira, 13 de setembro de 2011

Karma drama

Escuridão ao redor
Tempo ao revés
O amor
A resistir bravamente
E tudo o mais num vão

Vagueia o tato
A decifrar contornos na penumbra
Ilusão, sentido, matéria
Voragem desconcertante do nada
Um Eu fatigado, a questão
E tudo o mais se destroça

Resta um impulso:
Mergulhar em si
(No tempo roubado do tempo
Na pausa ritimada do pulso)
Afundar em contorção
Feito serpente pelo chão
A esfolar a pele morta

Num clarear da visão:
Um princípio, um fim e a passagem
(Exatamente no meio)
Um oceano revolto a chacoalhar um cais
Onde o infinito inteiro
Aporta.